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A MAGISTRADA E A CATÁSTROFE EM BRUMADINHO Perla Saliba Brito* Quando titularizei na 1ª Vara Cível, Criminal e da Infância e Juventude da Comarca de Brumadinho, em maio de 2013, onde exerci a jurisdição por sete anos, não poderia imaginar que, lá, iria me deparar com o maior desafio da minha carreira, ao vivenciar uma das maiores catástrofes humanas envolvendo a mineração: o rompimento da barragem no Córrego do Feijão. Em Brumadinho, experimentei a realidade estabelecida após a catástrofe que causou múltiplas rupturas e perdas, simbólicas, culturais, econômicas, de infraestrutura, de familiares, amigos, vizinhos e lugares de referência. Tudo a demandar a imediata atuação, não só do Poder Judiciário, mas de todo o Poder Público. O fato é que o caminho percorrido trouxe vários ensinamentos e me transformou em todas as vertentes. Três anos após o rompimento da barragem de rejeitos de Fundão, no Município de Mariana/MG, em 25 de janeiro de 2019, às 12h28, a barragem BI, do Complexo Minerário do Córrego do Feijão, em Brumadinho, operada pela Vale S.A., entrou em colapso, fazendo transbordar outras duas barragens, IV e IV-A, integrantes do complexo minerário, liberando cerca de 12 (doze) milhões de metros cúbicos de rejeitos que ocasionou a morte de 272 (duzentos e setenta e duas) pessoas. Os rejeitos minerários formaram ondas gigantescas e avançaram em direção a carros, casas, árvores, animais e pessoas, a uma velocidade estimada de 80 (oitenta) quilômetros por hora, devastando o que estava à sua frente (NASCIMENTO, 2019, sem paginação). O mar de lama afetou não só a localidade do Córrego do Feijão, mas toda a população do Município de Brumadinho e região, arrastando consigo vidas, lares e sonhos, em um verdadeiro cenário de guerra. Nos primeiros momentos, havia toda sorte de notícias. Ninguém sabia ao certo o que havia acontecido e tampouco se poderia imaginar as proporções do desastre. Ao longo do dia as informações oficiais sobre o ocorrido foram sendo divulgadas, demonstrando que, no município pacato, hospitaleiro e de natureza exuberante, havia ocorrido uma das maiores catástrofes humanas e ambientais da história brasileira, e, quiçá mundial. A Brumadinho de então já não existia mais. À medida que as notícias chegavam ao Fórum, o desespero e agonia dos servidores e funcionários aumentavam, ansiosos por informações acerca dos conhecidos e parentes que trabalhavam na Mina do Córrego do Feijão. Além disso, foi noticiada a iminência de rompimento da barragem VI e a possibilidade de os rejeitos atingirem o Centro da cidade. Tornou-se imperiosa a liberação dos servidores e funcionários do Fórum local que, diante de todas as informações, já não tinham mais condições psicológicas de exercerem suas funções, especialmente aqueles que residiam além das pontes que cercam o município e às margens do rio, vez que, caso se concretizasse o rompimento, ficariam impossibilitados de voltarem para casa. Às 15h50min daquela sexta-feira, os rejeitos minerários decorrentes do rompimento atingiram o Rio Paraopeba. Segundo o Corpo de Bombeiros de Minas Gerais, até às 16h49min ainda não havia confirmação de mortes (A GAZETA, 2019, sem paginação). Por volta de 17h00 horas, uma estimativa do Corpo de Bombeiros já apontava quatro vítimas feridas e duzentas pessoas desaparecidas. O caos estava instalado. Todos estávamos atordoados e ainda inconscientes da nova e árdua missão que a catástrofe nos reivindicaria. O mar de lama gerado pelo rompimento da barragem inundou a população brumadinhense de tristeza e dor. A impressão que se tinha era de que a população, toda, havia morrido. Todos estavam perplexos. O silêncio que pairava sobre a cidade era quebrado, tão somente, pelo barulho contínuo de helicópteros que sobrevoavam a região na busca por sobreviventes e pelo burburinho de pessoas que ficavam à porta de suas casas, com a tristeza estampada em seus rostos, à espera de notícias de parentes, vizinhos e/ou amigos que estavam no local da tragédia. À época, fazíamos um plantão por ano em Brumadinho. E, por coincidência ou predestinação, não sei, naquele ano de 2019, meu único plantão estava previsto para iniciar-se às 18h00 do fatídico dia 25 de janeiro. Diante do cenário apresentado, medidas inéditas, urgentes e efetivas de múltiplas naturezas foram exigidas em todas as esferas, especialmente do Judiciário local, como forma de assegurar os direitos fundamentais dos atingidos. Em menos de 72 (setenta e duas) horas do ocorrido, durante o plantão forense, vários requerimentos foram aviados e analisados pelo Poder Judiciário em Brumadinho, sendo adotadas medidas de extrema relevância para a garantia dos direitos basilares dos atingidos e para se apurar a responsabilidade pela catástrofe ocorrida. Além do bloqueio do valor de 10 (dez) bilhões de reais da empresa proprietária do empreendimento minerário que se rompeu para se assegurar a indenização pelos danos ambientais e socioeconômicos causados, foi determinada, dentre outras medidas, a salvaguarda dos animais atingidos pelos rejeitos minerários às expensas da mineradora, decretada a prisão temporária de supostos envolvidos na tragédia e deferida busca e apreensão nos seus endereços, iniciando, assim, uma série de demandas judiciais de naturezas diversas referentes ao tema, fazendo com que o acervo processual das duas Varas da comarca aumentasse expressivamente. A maioria das vítimas que morreu no local tinha filhos e era arrimo de família. Repentinamente, deixaram órfãos e familiares desamparados. Com o passar do tempo, várias ações de natureza familiar, relacionadas ao rompimento da barragem, também foram distribuídas. Ações de guarda e regulamentação de visitas envolvendo infantes que ficaram órfãos começaram a ser propostas. Alguns familiares das vítimas travaram disputas entre si referentes ao direito de guarda ou visitas dos menores, evidenciando que o desastre ocorrido também veio a destruir, em alguns lares, a harmonia que ali reinava. Muitas ações de curatela, declaração de união estável, declaração de inexistência de união estável, alvarás judiciais para levantamento de valores deixados em contas bancárias e de inventários foram intentadas. Familiares das vítimas buscavam a regularização das situações fáticas ocasionadas pela tragédia para, a posteriori, requererem os benefícios e indenizações que entendiam de direito. Além disso, o fato de a Barragem I, do Córrego do Feijão, ter se rompido cerca de três meses após ter sido garantida a sua estabilidade mediante declaração emitida pela empresa responsável pela realização da auditoria técnica de segurança na estrutura minerária em questão, também afetou o sistema de certificação de barragens minerárias, o que impôs, após o rompimento, um incremento na fiscalização das barragens pelo Poder Público, e que algumas barragens fossem declaradas em situação de emergência, exigindo, assim, do Poder Judiciário, estado de alerta nos processos envolvendo atividades minerárias de potencial risco de dano ambiental e especialmente humano, para se evitar que catástrofes semelhantes novamente viessem a ocorrer. Com o desastre, veio a premente necessidade de reestruturar o Judiciário local e capacitar mais profissionais. Foi preciso se preparar para lidar com o inusitado. Prontamente recebemos todo o apoio do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, que desde as primeiras horas disponibilizou aparato físico e humano à comarca, propiciando a eficácia no atendimento das demandas que foram surgindo. Outro pilar para o bom andamento dos trabalhos foi a harmonia existente no ambiente forense de Brumadinho, especialmente entre os servidores e os juízes locais, à época eu e o querido colega/amigo Rodrigo Heleno Chaves, então juiz titular da 2ª Vara da comarca. Entretanto, não foi nada fácil lidar com a situação. A exaustão psicológica foi inevitável. O sono não mais me vinha. Na verdade, ninguém, absolutamente ninguém, está preparado para vivenciar uma catástrofe de tamanha proporção. E, naturalmente, a nova realidade por mim experimentada resvalou na minha vida pessoal, afetando não só a magistrada, mas a mãe, a mulher, a filha, a “dona de casa”. Em razão da preciosa ajuda que tenho por trás da atividade jurisdicional, sempre consegui conciliar igualitariamente a vida particular com a carreira, com muita luta e dedicação. Mas, naquele ano de 2019, minha vida virou de “cabeça para baixo”. A maior parte do meu tempo foi dedicada a Brumadinho, de modo que a convivência com minha família, notadamente com meus três filhos, à época com dois, cinco e oito anos de idade, e meu marido, os cuidados com a minha casa e minha saúde, ficaram em segundo plano. Com isso, inevitavelmente, vieram a ansiedade, a culpa e o sentimento de impotência que tanto atormenta a nós, mulheres, por não conseguirmos dar conta de tudo como gostaríamos no exercício da nossa dupla, ou melhor, múltipla jornada. A despeito de ter contado com todo apoio em casa e no trabalho, esses sentimentos se apoderaram de mim de forma incontrolável, rendendo-me um quadro de transtorno de ansiedade em razão do qual recorri a medicamentos por três anos. Ossos da múltipla jornada. Ossos do nobre e tão gratificante ofício que escolhi, a magistratura. Ossos do fato de ser mulher. Experimentei os mais profundos sentimentos humanos, para o bem e para o mal. Eles andam juntos a revelar a grandeza e a fraqueza humanas. Contudo, com a distância do tempo, ao olhar ao longe o vivido, algumas certezas vão se formando a permitir identificar com mais precisão o lugar em que me encontrava naquilo tudo e com isso refazer algumas leituras do cenário em que me vi inserida. Fiquei longe da família, mas felizmente a família estava perto. Pude me dedicar com toda a força que o momento exigia. Tive respaldo para isso. Fiquei longe dos amigos, do lazer. É como ficar longe até de si mesmo. Não era mais a dupla jornada de uma mãe e de uma juíza. Na verdade, eram múltiplas e desconhecidas jornadas, as quais, no entanto, foram possíveis de serem trilhadas, pela inquestionável força adquirida das inúmeras jornadas que as mulheres são capazes de trilhar. *Juíza de Direito do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais; Titular da 1ª Vara Cível, Criminal, da Infância e Juventude e Juizados Especiais da Comarca de Brumadinho à época do desastre, atualmente lotada no 3º JD da Unidade Jurisdicional da Comarca de Betim REFERÊNCIAS A GAZETA. Rompimento de barragem da Vale mobiliza Corpo de Bombeiros em Minas. A Gazeta. 25 jan. 2019. Disponível em: Acesso em 24 abr. 2020. NASCIMENTO, Pablo. Velocidade de lama da barragem da Vale chegou a 80km/h, diz bombeiro. R7. 01 fev. 2019, atualizado em 01 fev. 2019. Disponível em: >https://noticias.r7.com/minas-gerais/velocidade-de-lama-da-barragem-da-vale-chegou-a-80- kmh-diz-bombeiro-01022019>. Acesso em 24 abr. 2020.

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